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A CRÍTICA TÓXICA DE TINHORÃO – ponderações sobre sua história-social da música popular brasileira.  

 

 

Por André Pereira.

José Ramos Tinhorão é uma lenda viva de nossa música brasileira. Em seu caso, não por fazer música, propriamente, mas sim por falar dela. Tinhorão é um apelido, e a palavra designa uma planta extremamente tóxica. O simples contato do vegetal com a pele humana pode causar muita irritação. Ela é capaz de matar se ingerida. Sabemos também que as memoráveis críticas desse autor sobre a canção criada e produzida no Brasil se tornaram intragáveis pra muito gente. Décadas antes da atual modinha de se pichar a autoridade artística de figuras do gabarito de Chico Buarque ou Caetano Veloso, o autor já ameaçava a unanimidade de alguns dos reconhecidos pilares da música Brasileira. Abalados, Chico assumiu que queria “dar um pau” em Tinhorão enquanto Caetano declarou que o crítico era um histérico. O pesquisador sempre foi a pedra no sapato do statuos quo da chamada MPB. Até mesmo a bossa-nova não escapou ilesa, que foi avaliada por ele como apenas um desdobramento comercial da cultura colonialista norte-americana no país do carnaval. Uma ramificação do jazz. Paradigmas como Tom Jobim e Vinícius de Morais foram  desconstruídos  pela  ótica  sociológica  e  histórica  de  Tinhorão,  carregada de tons 

O velho estudioso também é um famigerado colecionador de partituras, recortes de jornal e discos de todos os formatos. Embora, no pequeno apartamento em que mantinha sua vasta coleção e morava (até a parceria com o Instituto Moreira Sales, onde hoje se encontra o material) as coisas não estivessem tão organizadas, tudo por ali já havia sido estudado e depurado pelo pesquisador. “É como se diz, se aprende uma coisa fazendo”, explica. Essa prática é fundamental no embasamento de todo texto crítico produzido por ele. Seu trabalho é extremamente metódico e as referências são as mais vastas e precisas possível. Detalhes historiográficos são enfatizados em sua narrativa e a farta documentação assegura a legitimidade de seus argumentos. Além disso, Tinhorão utiliza o método materialista-histórico para interpretar o fenômeno cultural e embasar seu posicionamento. Ou seja, ele observa a realidade social dividida em classes – onde, grosso modo, há aqueles que decidem o que será produzido (em termos de cultura de massa) e como o produto será divulgado e distribuído ao grande público, e outros que consomem o que há de disponível. Isso significa perguntar: quem produz? O que se produz? Quem consome? O que se consome? Como se consome? Questões importantes para a compreensão dos porquês de Tinhorão. E uma das grandes polêmicas está nesse ponto: O pesquisador acredita que durante determinado momento, estilos musicais tradicionais de nossa terra brasilis foram usurpados de seus lugares no inconsciente popular e substituídos por produtos culturais meticulosamente planejados para fins comerciais. As antigas músicas de natal, as músicas de São João e as peculiaridades regionais foram substituídas por produtos comerciais padronizados, introjetados em nosso país via as indústrias transnacionais. “A indústria fonográfica matou a música de carnaval”, afirma. Não é difícil entender a linha de raciocínio de Tinhorão. Para ele, com a abertura dos mercados brasileiros aos investimentos estrangeiros no decorrer do século XX, principalmente na sua segunda metade, e com o estabelecimento da indústria da comunicação no Brasil, ocorreu o estímulo do processo de substituição da música nacional por uma música de padrão estrangeiro, alterando substancialmente aquilo que transitava nos ouvidos brasileiros até então.

Novos padrões musicais foram estabelecidos no país através das empresas que aqui se instalaram no início do século XX, e que faziam a gravação e a distribuição dos discos. A partir daí, quem definiu o que seria circulado em termos musicais no território brasileiro foi a grande indústria fonográfica e do entretenimento com certa conivência governamental sustentada por uma conciliação de interesses. O primeiro samba registrado no Brasil, chamado “Pelo telefone” (1917), de Donga e Mauro de Almeida, foi gravado na famosa Casa Edison, Rio de Janeiro, mas por um selo Alemão, a Odeon Records. O autor defende que com a chegada dessas empresas estrangeiras e seus vultosos capitais apenas aquilo que era tido como rentável aos olhos dos investidores seria gravado, distribuído através de discos e divulgado massivamente nas rádios e cinemas do país. Outro aspecto importante é que Tinhorão não ignora que a música feita no território nacional desde sempre recebeu influência externa, o que se pode observar até na musicalidade de certas etnias indígenas. Mas, antes da chegada dos discos estrangeiros havia um maior isolamento da música feita e praticada por aqui, o que favorecia a formação de elementos musicais idiossincráticos, peculiares às regiões em que eram experienciados. Mesmo quando as partituras europeias ficaram populares nos lares das elites brasileiras, a forma   como    essas    músicas    eram    reproduzidas,    aqui  nos   trópicos,

Grande parte da pesquisa feita por Tinhorão tenta responder a questão: Quais foram as transformações sofridas pela música brasileira no século XX? O samba é considerado um estilo musical legitimamente brasileiro, resultado da aproximação entre harmonias europeias, como a polca ou a marcha e ritmos africanos, como as batucadas. Do encontro entre o maxixe e o lundú surge a semba e a umbigada que mais tarde origina o samba e seus maneirismos. Algo, segundo Tinhorão, popular no sentido de ser produzido pela classe desfavorecida da sociedade e consumido por ela mesma. Seu deslocamento geográfico ocorreu da Bahia para o Rio de Janeiro sem a alteração das condições socioeconômicas de seus praticantes. Não é necessário relembrar as características básicas que compõem os antigos sambas, porém, uma delas é importante destacar, visto que o pensamento de nosso pesquisador fica mais claro ao entendermos essa problemática. Os antigos sambas feitos nos morros cariocas eram resultado de criações coletivas. A autoria desses sambas era desconhecidas e portanto pertencentes, de fato, à comunidade. Os refrões eram cantados em rodas e muitos desses versos espontâneos caíam no gosto popular, sendo repetidos ao longo do tempo e se fixando no inconsciente da população. A mudança vem com a gravação em discos desse repertório, que ao ser comercializado passa a ser assinado por seus cantadores e instrumentistas. Ou seja, muitos dos primeiros sambas gravados, foram usurpados de sua condição coletiva e transformados em obras pessoais. A partir daí, aquilo que era espontâneo tornou-se planejado. Aquilo que era coletivo tornou-se pessoal. Além disso, os arranjos e o acabamento final dado à essas canções, na circunstância de suas gravações, foram modificadas de sua aparência inicial pelos arranjadores e engenheiros de som, muitas vezes estrangeiros ou brasileiros formados fora do país, extremamente influenciados pelo gosto europeu e norte-americano.  

É nesse sentido que Tinhorão defende a ideia de que o samba, ao longo do século XX, foi se distanciando de suas características originais e populares, e assim, perdendo, de certa maneira, sua autenticidade ou mesmo a sua essência. É por isso que muitas vezes sentimos um certo ar purista nas falas do autor, o que soa estranho, pois se pensarmos dialeticamente, como propõe o próprio método utilizado pelo pesquisador, são naturais e esperadas as transformações. Nem um aspecto da cultura é extático. Mas, temos que concordar com ele, que as influências recebidas pelo samba, tanto em seus processos de criação, quanto de produção, ao longo do período citado, pela presença da indústria fonográfica e suas orientações comerciais, o levaram a condição atual de música estilizada voltada para o mero entretenimento. O exemplo mais claro é o surgimento do pagode, ritmicamente ligado ao samba, mas com toda uma estrutura harmônica e de produção artística baseadas na música Pop negra norte-americana. Em relação às letras, o amor romântico predomina sobre qualquer outro tema, mas é tratado de uma maneira bastante convencional, cravado no lugar-comum. Toda a carga de contestação e singularidade local dos antigos  sambas  são  Transfor-

Durante os anos 60, o autor encampou uma acirrada disputa argumentativa nas publicações jornalísticas e periódicos do país. A musicalidade da bossa-nova e mais tarde o espalhafatoso surgimento da tropicália foram objetos de sua análise. Na época, Augusto de Campos se apresentou como um antagonista de destaque em relação ao pensamento de Tinhorão. Campos era um entusiasta da bossa-nova e da Tropicália, seus artigos são grandes lisonjeias ao processo chamado de linha evolutiva da música popular brasileira. Suas análises são de âmbito estético e semiótico, ligados a escola metodológica de Ezra Pound. “Sim, a bossa-nova foi uma revolução na música  popular,  e  não apenas  na  brasileira” 

O importante aqui não é encontrar a interpretação mais válida. O que muitos podem ver como oposição ou antagonismo pode também ser visto como complementariedade. Antes de tudo, o que está em jogo entre os posicionamentos citados acima é a relação entre a verdade histórica, defendida por Tinhorão, e a verdade estética, sustentada por Augusto de Campos. São perspectivas diferentes de se observar um mesmo objeto. Se, para Augusto de Campos, a bossa-nova é resultado de um consequente desdobramento estético do samba e o processo de formação de um produto cultural nacional e popular acabado, pronto para exportação. Para Tinhorão, a bossa-nova é resultado da apropriação de elementos da cultura popular pela indústria fonográfica, transformados em produtos comerciais estilizados, destituídos de suas verdadeiras raízes populares, e portanto, não podendo ser, a bossa-nova, vista como um passo à frente do samba, mas como sua degeneração. É óbvio que a discussão não é tão simples quanto exposta aqui neste pequeno artigo, mas, parte da compreensão sobre a história da música brasileira reside nessas questões. E justamente por não ser uma voz afinada com as demais é que Tinhorão deve ser consultado. Como já disse Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra” e portanto se faz necessário averiguar todos os aspectos de uma realidade, inclusive seus aspectos positivos e negativos. Uma coisa é certa, o trabalho de pesquisa e estudo de Tinhorão é rigoroso e muito sério. Mesmo para quem discorda de suas posições, as fontes citadas por ele são preciosas e sua argumentação suscita eternos debates. Também não se pode negar que ele é um grande conhecedor do assunto. Mesmo nos dias atuais, esse autor continua despertando admiração e repulsa em seus leitores e debatedores, e isso é muito bom, o que confirma que ainda seu pensamento instiga e ilumina muitas reflexões no campo da música brasileira. Confirmando que todo pensador provocativo é necessário para a não acomodação das ideias e a evolução do conhecimento.      

Tinhorão e parte de seu grande acervo dispostode em 31 m2 de um pequeno apartamento

puristas, como veremos mais adiante. Enfim, esse profundo pesquisador da música popular brasileira sempre prezou pela honestidade intelectual e seus “ataques” nada mais são que o reflexo do ímpeto assertivo contido em suas análises da realidade objetiva do universo musical. As conclusões de Tinhorão são muitas vezes interpretadas como radicais porque ele não faz bajulação dos artistas consagrados. Seu interesse está em compreender o processo que se desenrola na produção da música feita no Brasil. Sua pesquisa não foca na dramaticidade das biografias ou nos episódios pitorescos de nossa música, mas sim nos contextos históricos e sociológicos que explicam os fundamentos da existência da chamada canção brasileira.

Pelo telefone é considerado o primeiro samba registrado no Brasil. O selo Odeon, responsável pela gravação, era de origem alemã.

tão distante da sua origem nos grandes centros mundiais, acabava determinando sua aparência final, tornando-a diferenciada pelo verniz local. Ou seja, com a expansão dos meios de divulgação de massa e a popularização do gramofone e mais tarde do rádio, a música estrangeira é ouvida, digamos assim, mais de perto. Sua reprodução feita pelos músicos aqui no Brasil se torna mais próxima do original, o que, segundo a visão de Tinhorão, irá implicar em uma padronização sem precedentes na forma do músico brasileiro tocar. Nossos artistas serão, mais que nunca, influenciados pelo padrão externo e muito de sua singularidade estilística será apropriada pela indústria e depois estilizada e dissolvida em mercadorias culturais comerciais.  

O trabalho de Tinhorão como jornalista e cronista da música brasileira não pode ser menosprezado devido sua seriedade.

mados em pagodes com letras açucaradas, cantadas por artistas educados em um ambiente marcado pela cultura POP mundial. É certo que indústria fonográfica marcou profundas mudanças na forma de se fazer e produzir os sambas, e para Tinhorão esse processo acabou por conduzir o estilo musical à sepultura, transformando os sambas originais em artigos de museu ou conteúdo de aulas escolares.  

escreveu Augusto de Campos. Enquanto isso, para Tinhorão, a bossa-nova nunca havia sido popular, de fato. Ela, no fundo, seria uma tentativa arrogante da juventude elitista do país, representada pelos estudantes universitários, de paternalmente ditarem os rumos ideológicos e musicais do povo brasileiro. Segundo José Ramos Tinhorão, em seu livro História Social da Música Popular Brasileira, nunca houve uma real aproximação entre os bossanovistas e os músicos populares, e que exemplos como o do show Opinião, onde Zé Keti (representando o morro carioca) e Nara Leão (representando a rica zona sul) cantam juntos, eram casos sem representatividade por seu caráter de projeto eventual, aparente simulação e anti-naturalidade. Agora, restava a Augusto de Campos argumentar que a crítica musical no Brasil era tudo, menos musical. Então, em uma entrevista, após acusar Tinhorão de ser uma farsa, disse: “Críticos, como Tinhorão, escrevem com ignorância total da evolução musical, esquecidos de que a música popular nada mais é que um capítulo de algo que se chama "música" e que tem a sua história e desenvolvimento em marcha (...). Os caminhos da música moderna não são, como pretendem os xenófobos, ditados pelo capitalismo americano, mas por uma irresistível necessidade de libertação dos cânones repressivos impostos, por muitos séculos, aos homens ocidentais (...). O museu regional antitransistor é o sonho ingênuo e paternalista dos que não sabem viver a sua época e, sem desconfiar, exibem a cada passo as polainas do passado museológico em que ainda residem”.

Augusto de Campos pode ser considerado o grande antagonista de Tinhorão nos anos 60. Uma briga de peso.

Uma esclarecedora entrevista de Tinhorão para o programa JOGO DE IDEIAS, um projeto do Itaú Cultural. PARTE 1.

Uma esclarecedora entrevista de Tinhorão para o programa JOGO DE IDEIAS, um projeto do Itaú Cultural. PARTE 2.

Pelo telefone é considerado o primeiro samba registrado no Brasil. O selo Odeon, responsável pela gravação, era de origem alemã.

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