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CUIDADO COM O SR. BAKER – a arte enquanto provocação e negação da inércia.

 

 

Por André Pereira.

Ginger Baker é daqueles artistas que possuem uma história de vida tão inusitada quanto a própria arte que faz. Genial com as baquetas, não se contentou em apenas se tornar um exímio musicista, foi além. Queria entender a música e sua origem. Necessitava encontrar a pulsação ancestral. Caiu de cabeça na pesquisa e rumou para a África. Sua paixão sempre foi o jazz e os tambores. Seu instrumento de trabalho, a bateria. Seu vício, a heroína. Teve participação fundamental na história do rock, mas nega sua filiação ao estilo. Quando perguntado sobre seu pioneirismo no heavy metal, afirmou categórico: "Heavy Metal? Aquela merda deveria ter sido abortada!" Um homem sem rodeios, assertivo. Sua personalidade marcante e explosiva é constantemente comentada. Caras como Eric Clapton e Jack Bruce já prestaram seus depoimentos afirmando que a competição de egos no tempo do Cream não era fácil e que Baker era bom nisso. Não contente com o luxo e as orgias do olimpo da música Pop dos anos 60, o músico queria mergulhar no cerne de sua arte. Na Nigéria gastou uma fortuna para construir um estúdio e tocar com Fela Kuti e sua turma. As aventuras e as agruras desse heróico baterista são bem conhecidas. Então, falaremos aqui sobre os significados de sua obra. Sobre como podemos pensar a existência de um tipo de artista-criador como Baker através de sua trajetória contextualizada historicamente.

Primeiramente, todo artista que alcançou o nível de excelência e o máximo reconhecimento possível em sua carreira possui algumas características reconhecíveis. Uma delas, a mais importante talvez, recorrente em artistas das mais variadas safras e direcionamentos, desde Mozart à Michael Jackson, é a busca pela compreensão dos significados mais profundos do que seja a própria arte. No caso de Ginger Baker, sua inquietação insaciável por novas descobertas no campo da percussão garantiram o gigantesco diferencial de sua música. Ele nunca se fixou em um tipo de sonoridade ou estilo. Mesmo ousando e arriscando muita coisa, Ginger não teve receios em trocar o certo pelo inusitado. O inicio de sua carreira encontra-se no jazz, influenciado por caras como Gene Krupa, Buddy Rich e Louie Bellson (com suas técnicas que incluíam o uso do bumbo duplo). Essa ligação com os jazzistas da percussão despertou em Ginger Baker a curiosidade pelos sons dos tambores. E sua subsequente aventura pelo universo das batidas ancestrais o levou até a África. É essa preocupação em pesquisar profundamente as origens do instrumento e da música que tocava que constitui o núcleo de sua obra. A disposição de se entregar a essa busca (mesmo que ela não fosse contribuir para seu enriquecimento financeiro ou aumento de sua fama nos meios de comunicação) impulsionou o baterista para dimensões mais elevadas da música. Ginger é conhecido mundialmente como um ex-cream, mas isso é muito pouco para ele.

A mega banda Cream definiu um estilo, influenciou gerações de músicos e ainda é considerada uma das maiores bandas de todos os tempos, embora o projeto tenha durado apenas dois anos. Foi muito intenso, isso é verdade – a biografia da banda mostra isso. E foi exatamente nesse período que Ginger iniciou seu processo de amadurecimento, ampliando e intensificando seus estudos de percussão. Ele conhecia todos os macetes do instrumento. Havia tocado com os melhores músicos do mundo. Também havia percorrido um longo caminho na trilha musical. Se fosse um artista acomodado ou atrás de uma fórmula de sucesso poderia ter continuado a reproduzir uma música como a que fazia na época do Cream atualizada aos nuances da moda. Porém, essa não era a intensão. No início dos anos 70 o mundo passava por inúmeras transformações. Guerras, revoluções culturais e embates políticos estavam na ordem do dia. O movimento da contracultura havia dado o ponta-pé inicial na corrida pela busca de estruturas de pensamento alternativas a ética do freeway of life. Ginger, assim como seus contemporâneos, comungava da sede por informações que fossem obtidas em outros lugares que não no mundo ocidental. Para não perder o trem história, nosso herói parte para a Nigéria ao encontro de seu amigo Fela Kuti. Ginger Baker abandona tudo - família, amigos e oportunidades. O baterista está em um dos seus períodos mais loucos. A viagem para a África é registrada no belíssimo documentário Ginger Baker na África (1971). Em Lagos gasta uma puta grana para montar um estúdio e grava pérolas, como o disco Why black man they suffer (1971), de Fela Kuti.

Obviamente, não podemos esquecer que nos anos 60 e 70 a indústria da cultura de massa e os meios de comunicação estavam em pleno desenvolvimento. A estabilidade econômica dos EUA no pós- guerra e os recursos disponibilizados por grandes empresas internacionais possibilitavam os mais diversos experimentos na tentativa de se criar produtos culturais cada vez mais lucrativos. Novos mercados se abriam à exploração. A criação da figura do adolescente enquanto público de consumo tomou grande impulso. Toda inovação poderia ser adicionada àquele caldo doce e colorido, cada vez mais atrativo para aquela camada de público. Algumas mercadorias tinham vida efêmera, outras se transformaram em uma eterna mina de dinheiro, como a criação do produto Beatles. A expansão das telecomunicações e o veloz desenvolvimento tecnológico empolgavam todos. Nessa pegada, as loucuras de Ginger na África rendem seu primeiro disco solo, Stratavarious (1972), contando com a participação de Fela Kuti, gravado no citado estúdio em Lagos. O que é interessante, é que a empresa Polydor Records – que naquele ano se tornava a mega empresa Polygram depois de sua fusão com a Philips – distribuiu o disco. Mesmo sabendo que o álbum não seria um grande sucesso era possível o investimento e o risco. Além do mais, haviam produtos já consagrados que garantiam seus astronômicos lucros e as experimentações poderiam auxiliar na criação de novas tendências entre outras jogadas comerciais.

 

Pensar em um artista como Ginger Baker nos dias atuais é muito difícil. A existência de um músico exótico e inusitado que recebe investimento da grande indústria fonográfica é possível apenas nessa época romântica das experimentações comerciais. Lógico que artistas de gigantesco talento e brilhante qualidade estética estão por aí. Mas, no contexto da arte POP, aquela sustentada pelo grande capital, esses fenômenos são raros. Hoje, com a complexidade das metodologias de pesquisa na área das tendências musicais, por exemplo, os produtos se tornaram cada vez mais padronizados pois são capazes de atender a espectativa de grandes públicos. Atualmente, a indústria fonográfica prefere concentrar totalmente seus investimentos em produtos musicais que terão garantida aceitação de público. Aquilo que dá certo, que gera publicidade e retorno imediato é exaustivamente explorado até seu esgotamento. Produtos semelhantes são ofertados simultaneamente. Quando é lançada uma nova moda musical ela não pode causar estranheza, deve conter muitos dos elementos da moda anterior, agora adaptados ao gosto do momento. Ou seja, o espaço para o experimentalismo no campo da música POP cedeu lugar ao domínio do fisiologismo técnico. Os produtos criados pela indústria fonográfica atual são meramente mercadorias de entretenimento. Essas mercadorias são um atentado a inteligência do público que as consome por serem forjadas com o que há de mais banal e superficial no universo da cultura. Seus ritmos e harmonias são estilizados, depois esterilizados e, finalmente, simplificados. As letras são vulgares e redundantes. A partir dessa lógica a conclusão será a seguinte: quanto mais simples o repertório musical e poético, maior será o público consumidor. E assim, os grandes veículos ocupam toda sua programação com mais do mesmo impedindo o acesso do grande público a variedade existente de opções e garantindo o máximo de lucro a cada lançamento.

Desde o final dos anos 50 até os dias atuais, Ginger Baker vem gravando. Passou por muitas fases, e como já foi dito no texto, é um dos pilares da música do século XX. Hoje, o senhor Baker mora em uma bela casa de campo na África do Sul. Realmente, os sons dos tambores ainda fazem seu efeito na cabeça desse mestre. Ele ainda continua sendo a personalidade controversa e provocativa dos tempos de outrora. Um pouco cansado por conta da idade, claro. Mas, a energia de sua bateria pulsa com a intensidade de sempre. O jazz também nunca foi abandonado pelo baterista. E suas incursões no mundo da musicalidade africana são uma constante desde sua primeira viagem para aquele continente. Há uma lição importante nisso tudo: os grandes artistas souberam ousar e desafiar seu tempo. Não cederam à inércia do estrelato e souberam manter o valor de sua arte acima do dinheiro. A vida de Baker foi uma loucura só. Ele mesmo admite as muitas burradas que cometeu durante esse longo trajeto de transgressões. Mas, sua integridade artística é invejável. Artistas que souberam ir até os limites para expandirem nossa consciência do mundo e apontarem as possibilidades do infinito sacrificaram parte de suas vidas por isso. No final das contas, sem a existência dessas figuras tão criativas e corajosas, o mundo seria muito igual e repetitivo. Talvez seja isso que o processo de industrialização da cultura esteja fazendo - gradativamente padronizando e tornando todas as suas mercadorias em algo único pincelado por várias cores. Com certeza é um processo que envenena a criatividade e impede o surgimento de artistas de visão plural e sem limites.

Ginger não se contentou em atingir um nível de excelência, queria mais. Queria expandir sua consciência musical.

A arte de Ginger continuava depois que os hofotes se apagavam. A música é uma paixão muito séria.

Em um contexto onde a música POP se transformou em uma gigantesca indústria, as experimentações tem cada vez menos lugar. Pensar o surgimento de artistas como Ginger Baker na cultura POP atual é praticamente impossível.

Baker faz parte de uma tradição de artistas altamente criativos e provocativos.

Primeiro disco solo do mestre que conta com a participação de Fela Kuti.

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