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Rock em transe: a arte profética e xamânica de Edu Planchêz

 

 

Por andré Pereira.

Dessa vez eu quero falar de um amigo e sua obra – e quero deixar que ele fale também. Esse texto não é pelo afeto, o que poderia. Mas a arte de Edu Planchêz deve ser sempre comentada e fruída – ela encontra-se inserida na tradição dos artistas-xamãs. Coisa da maior importância. Há uma força selvagem e corajosa em sua manifestação que espanta e encanta. No mundo que transformou a arte em mais uma mercadoria de consumo descartável, Planchêz faz de sua própria existência uma concepção estética. Inevitavelmente, em sociedades de monopólio industrial, como a  nossa, artesãos  dessa estirpe são considerados malditos. Mas, todo xamã, assim como todo verdadeiro poeta, caminha nas zonas limiares da existência humana e deve estar preparado para enfrentar as grandes epopéias que a vida extraordinária que leva proporciona. No caso de meu amigo, o seu nascimento foi o selo do próprio destino. Quando criança, a avó profetizou sua sina de artista e alertou: “Ser poeta é ter na fronte o sinal da maldição”. Se recordarmos a biografia de William Blake e Arthur Rimbaund (dois poetas centrais na vida/obra de Planchêz) teremos reforçada essa ideia dos auspícios obrigatórios enfrentados pelos poetas. Blake viveu uma vida de sérias limitações econômicas, além de carregar a pecha de esquizofrênico e Rimbaund, aos 37 anos morria muito doente, sem uma perna e alucinado. Vidas intensas e marcadas pelas inconstâncias entre as visões do paraíso e do inferno. Mas, Planchêz gosta disso tudo. Ele explica e brinca com o assunto:

“Sobre essa coisa de ‘ser poeta é ter a maldição na fronte’… Na real, eu descobri a pouco tempo, na internet, que isso vem de um verso do poeta português Camilo Castelo Branco. Tem um poema dele que em certo momento diz: ‘Ser poeta é ter o signal sobre a fronte’. É uma maldição maravilhosa, cara! É uma maldição que eu aconselho que todos abracem!  É um puta tesão essa coisa, irmão (risos). Acho que foi o poeta alemão Novalis que disse que um dia todos serão poetas. Eu sei que isso acontece mesmo. Eu quando penso no ‘ser poeta’ lembro dos grandes estudiosos do assunto, aqueles que tem consciência do que é a poesia, como Mário Faustino. Ele tem um livro chamado O homem e suas horas em que diz que a poesia está nas rádios, com os bons e maus poetas. O ‘ser poeta’ é isso aí. Está em todos os lugares”.

Antes de mais nada, Edu Planchêz se considera um herdeiro da geração beatnik. A chave para a compreensão do comportamento e trabalho desse artista encontra-se nessa definição. Basicamente, a poesia e a música de Planchêz nascem paralelas à sua própria vivência cotidiana. Não há distinção entre o “estar fazendo poesia” e o “estar vivendo a vida”. Absolutamente tudo  se transforma em arte. Ele prossegue: “Minha casa é a casa do mundo, das grandes almas. Minha família é incontável, tenho irmãos e irmãs espalhados por todos os cantos e recantos da Terra, por ultra e intra mundos. Ser BEAT, é ser de casa em qualquer lugar, não ter frescura, viver o extremo luxo e ao mesmo tempo amar o simples. Comer com a mão, sentar no chão, na rua, na praça. Trocar umas ideias com os trampeiros. BEAT é sinônimo de BHUDA, iluminação, alta cultura, cultura de rua. Comunidade. Comunitário. Solidariedade”. E quem conhece esse incansável poeta, quer seja pelas redes sociais (onde ele atua intensamente) ou pelos palcos, ruas e saraus da cidade do Rio de janeiro sabe que ele é mesmo um mahatma. Sua presença é sempre visceral e sua atuação contagiante. A fala doce e calma em uma roda de conversa, a explosão energética nas declamações dos poemas e a fúria no canto de seu rock tribal são a santa tríade de uma unidade. O saudoso jornalista e poeta joseense Dailor Varela o via como um “animal poético de versos livres e alucinados”.

“Cavando, cavando, cavando. Cavando. Só sei cavar”, canta Planchêz com sua banda elétrica. O filósofo Nietzsche utiliza uma metodologia e filosofia da história que estabelece princípios de interpretação dos acontecimentos de nossa vida coletiva. Chama-se genealogia. Na obra de Edu Planchêz podemos encontrar, de maneira lúdica e despretensiosa, uma certa genealogia da própria poesia. Em um olhar atento ao trabalho do artista é possível verificar essa preocupação em pesquisar profundamente a tradição – não se prendendo a ela – mas sim, resignificando-a. Se concordarmos com o autor e diretor de teatro Antônio Abujamra, quando diz que tudo que não é tradição é plágio, então Planchêz faz o caminho mais acertado. A prova evidente disso está no título de sua banda – Blake Rimbaud. Ao ouvir seu som percebemos o  resgate  e  a  manutenção  de 

A adolescência chegou e mudanças ocorriam. Saiu da cidade do Rio de janeiro e foi morar em São José dos Campos, SP. “Eu tinha 13 anos, ainda não mexia com arte. Eu ia muito ao cinema e gostava bastante de futebol. Eu ainda era meio autista naquela época. Eu me achava esquisito e as pessoas me olhavam estranho. Eu era uma espécie de escárnio. Aquele que apanhava quieto e de cabeça baixa. Mas eu tinha uma felicidade comigo mesmo e de ficar com a natureza. Eu acho que eu fugia das pessoas porque eu tinha essa coisa de ser escárnio. Não me sinto vítima por causa disso, não. Eu tinha um pai bastante rigoroso. Ele seguia os mandamentos e regras militares (risos). Ele chamava os filhos com um assovio. Mas eu entendo ele. Ele era um operário, a vida era difícil pra caralho. Arte era uma coisa que não se podia falar dentro de casa, embora meu pai tivesse sido poeta e cantor na juventude. Meu pai era compositor. ‘Seus olhos são duas contas pequeninas/ são duas pedras preciosas’ (canta). Meu pai era poeta, escreveu muito poemas – todos perdidos. Minha mãe rasgou os poemas todos. Na verdade, sobraram dois e um deles eu musiquei. Tinha uma foto da minha mãe com um poeminha dele. Ele tinha feito pra ela. Eu musiquei. Ficou mais ou menos assim: ‘Tens o perfil de um beija-flor/ És a mulher imortal dos meus sonhos de amor’ (canta). Eu sei que meu pai tinha muitas músicas. Mas essa coisa toda está perdida, não sei onde”

todo lirismo e verve das grandes bandas psicodélicas dos anos 60. Podemos traçar uma linha direta entre as premissas de clássicas bandas do êxtase, como o Doors, e as performances xamânicas de Jim Morrison. O som da BlackRimbaud e as atuações de Planchêz no palco dão continuidade àquela tradição de artistas que acreditavam na arte enquanto instrumento de iluminação. Uma resistência saudável à condição de pasteurização e egolatria que se encontra o artista e a arte atual. A sensação de participar de uma experiência estética comandado por Edu Planchêz  é muito próxima a sensação de estar em um ritual xamânico, em que os sentimentos mais profundos afloram e uma certa conexão com os estados primais de nosso ser  é estabelecida.

Jim Morrison, o rei lagarto, fazia de suas apresentações musicais verdadeiros rituais de adoração da vida e transe. 

Uma vez, quando perguntei sobre o seu grau de simpatia em relação a Rimbaud e Blake, o poeta respondeu enfático e com muita segurança:  “Eu sou Rimbaud, cara! Eu encorporei o Rimbaud de certa forma assim como encorporei também o Alexandre, o grande. Me entende? Esse Alexandre foi um guerreiro da puta que pariu. O cara é foda, meu irmão. Ele não perdeu nenhuma batalha! E morreu doente, de malária, de alguma doença. Morreu com uns 33 anos. O cara quando tinha 16 anos venceu uma guerra! Ele virou rei. Ele puxava um exército. Ia na frente puxando mais de 70 mil homens. Eu vou repetir o que o Verlaine falou pra Isabelle, a irmã do Rimbaud. Ele disse pra ela que o Rimbaud era a voz do futuro. Do futuro! ‘Ele (Rimbaud) acabou com a gente. Deu uma aposentadoria pros velhos poetas. Com ele começa um mundo novo.’ Isso disse o Verlaine admitindo pra valer que o garoto era do caralho. Então, pra mim, o Rimbaud é sinônimo de revolução. Já o Blake tem uma sabedoria mágica. William Blake é um sábio, né? Mestre espiritual. Dele a gente fala assim, com muito respeito. Uma alma especial. Ele conseguia enxergar as coisas ocultas. Sabedoria ancestral pura”.

Planchêz diz que o estado de percepção poética se manifestou antes do nascimento do poeta que  viria ser mais tarde. Quando criança contemplava sua própria existência e a natureza. Possuía uma personalidade introvertida, portanto, passava muito tempo sozinho. Inventava seus próprios jogos mentais. Criava seu mundo particular. “A minha primeira experiência consciente com a poesia foi numa árvore. Eu subi no tronco e tinha um monte de frutinhas em volta de mim, nos galhos dessa árvore. Aí eu fico na dúvida se isso foi real ou se eu sonhei. Se eu adormeci sobre a árvore. Eu nem sei explicar. Mas eu sonhava que eu via coisas mágicas. Eu tinha uma relação muito profunda com passarinhos, com árvores, com o céu. Com o espírito das águas. Foi um tipo de contemplação. Ali sozinho, comigo mesmo. Eu acho que muita gente me julgava autista pelo meu isolamento”.

 

William Blake, o poeta mágico e visionário.

O rebelde e genial Arthur Rimbaud, o garoto que mudou os rumos da poesia.

Edu Planchêz mantém a tradição da arte do êxtase.

Jack kerouac, autor da bíblia sagrada dos beatniks - "On the road", também propunha relações entre a arte e a espiritualidade.

A arte de Planchêz é sonho e conexão com as estrelas das galáxias.

Mas, antes de “arrancar o poeta” dentro de si, como ele costuma dizer, Planchêz tentou levar uma vida ordinária. E seguindo, inclusive, alguns passos de seu metódico pai, foi trabalhar em escritório. Um poeta do êxtase e do transe pronto a ebulir, preso a uma rotina em uma sala de repartição, cumprindo horários comerciais e se comportando adestradamente. Isso iria dar merda. “Eu tinha uns 20 anos e era funcionário do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), da força aérea, no setor administrativo. Mas eu não tinha muito tesão por aquilo não. Na verdade eu não estava me identificando com mais nada que fosse oficial. Tive alguns momentos bons, eu ganhava o salário e tinha segurança. Mas a rotina era um saco. Eu não suportava os militares. Tinha que chegar sete horas da manhã. Eu chegava sempre atrasado e depois do almoço eu só voltava pra bater o ponto. Eu era muito irresponsável (risos). Um irresponsável total pras pessoas que trabalham comigo. Aí eu comecei a escrever uns versos nas máquinas de escrever do escritório, perto de sargento, de outros oficiais. Sei lá, eu comecei a enjoar daquilo. Pulava de departamento em departamento. Não ficava mais de um mês ou dois e já me mudavam de lugar. Eu trabalhei em 20 departamentos. Então, um dia eu fui pro Rio e fiquei um tempo por lá. Fui despedido porque eu fiquei 3 meses sem dar as caras no trabalho. O poeta nascia ali no CTA, ainda tímido, mas já existia. Mas sabe mesmo quando apareceu o poeta? Na verdade, quando ele foi arrancado? Quando eu li um livro do Maiakovski sobre como fazer poemas. Pois, é! O Maiakovski chegou pra mim e disse que eu não precisava saber de gramática e de porra nenhuma pra fazer poesia. O lance era você ter um caderno na mão e ficar anotando o que viesse à cabeça. Aí eu comecei a fazer isso, cara. Ficava ali com o caderninho anotando tudo que eu pensava e falava, estando certo ou errado”.

A criação de Planchêz é múltipla. E múltiplos são seus métodos. Atento às mudanças históricas, ele também se adapta às novas formas de criação, produção e divulgação dos trabalhos. Um exemplo disso é sua intensa atividade na internet. Ele comenta: “Eu nem sei quem me vê na internet. Sei de algumas pessoas. Meu trabalho está espalhado pelo planeta. Pelo Brasil e pelo mundo. Nem tenho a dimensão de como vai a coisa”. Planchêz pode demonstrar aqui uma certa despreocupação com seu público de internet, mas na prática ele interage de tal modo e com tanta frequência com essas mesmas pessoas que isso se transformou em um processo específico de criação.  O poema Cosmic foi criado atavés do facebook e publicado originalmente na própria rede. Tudo começo e terminou na  timeline de sua conta na rede social. Ele explica: “Meu processo de criação eu coloco diante dos olhos e nas mãos de todo mundo. Eu escrevo um poema ou componho uma canção. E mesmo que só seja ainda uma ideia, eu já coloco no ar. Que seja só a primeira frase. Ninguém sabe ainda o que que é. O que aquilo quer dizer. De onde veio. De repente as pessoas começam a interagir. E eu vou complementando. Aí eu vejo algo que alguém comenta. Vou pra pesquisa. As vezes eu não sei se estou usurpando as coisas ou apenas juntando-as”. Parece um sistema de bricolagem interativa, vamos dizer assim. São ideias, frases e situações no ambiente virtual que vão inspirando o poeta. Planchêz utiliza isso com muita sagacidade e originalidade. Ele continua sua explanação:

 

“Eu comecei um texto com uma notícia que havia visto em um site de internet. Uma matéria que tinha saído na página do Yahoo. Dizia assim: ‘Sinal misterioso que tirou o sono de astrônomos era apenas um sinal micro-ondas’. Eu peguei só isso e publiquei no facebook. Mas não disse mais nada, nenhuma informação sobre o que a frase significava  ou  de onde eu a havia tirado. Várias pessoas curtiram minha publicação, mas o Joka Faria (poeta joseense), nos comentários de minha postagem, deixou  um  ponto  de  interrogação.  O  sinal  gráfico só.  Como  se  não  

tivesse entendido o que eu falei. Apenas um sinal de interrogação. Então pensei. Pô, eu tenho que saber do que eu tô falando aqui. Tenho que me fazer entender. Fui atrás daquilo. Na verdade, pra mim, microondas é aquele forninho elétrico que a gente liga na tomada. Aí eu parei pra pensar que havia uma galera que queria entender (ou desentender, né?)  o que eu queria dizer com aquela frase solta. Então, eu fui ver que o microondas é uma cortina de nuvens elétricas. E essa nuvem elétrica foi confundida, por anos e anos, com uma galáxia. Os astrônomos achavam que tinham descoberto uma galáxia nova, novas estrelas. E no final era apenas uma interferência, um registro de um sinal que não era aquilo que  eles pensavam que fosse. Pra continuar aquela ideia e pra explicar às pessoas o que eu queria dizer com aquilo eu fui trabalhar a coisa. Na pesquisa sobre microondas eu topei com a expressão Cosmic vision, e escrevi isso e chamei o poema de Cosmic. Fiz uma vírgula e coloquei Cosmic Blues. Referência a Janis Joplin, né? Mas isso tudo eu não sei se eu estou usurpando ou apenas juntando as coisas.  Ou seja, as pessoas queriam uma explicação e eu dei. Eu escrevo vários poemas diretos, assim… Durante os bate-papos da internet. Com amigos ou pessoas mais distantes, aquelas que vão aparecendo. Eu vejo as frases e vou pesquisando. Pego aqueles temas que acho os mais interessantes. E depois eu trabalhos eles ”

A arte de Planchêz carrega a tradição da música, poesia e iluminação

Cosmic ( edu planchêz )
—————-
Sinal misterioso que tirou sono de astrônomos
por 17 anos
era apenas um micro-ondas,
uma cortina de ondas elétricas,
que na visão profética do malandro Edu Planchêz,
se reparte em bilhões de arco-íris
para na porta da sala das criações
nos alucinar

Cosmic Vision, Cosmic Blues.

(Poema publicado no facebook no dia 15/05/2015)

Infelizmente, nesse curto artigo não é possível devassar a obra de um artista como Edu Plachêz. Além de extenso, seu trabalho possui uma carga de significados e tantas histórias anexas que é preciso fazer um recorte específico para que caiba no formato que apresento aqui. Então, concluo dizendo que ele é um poeta do futuro, sem dúvidas. Acredito que com a intensificação da mediocridade da cultura de massa e seu possível esgotamento, artistas xamânicos, com os poderes da profecia e da iluminação serão imprescindíveis. Eles que reconduzirão as pessoas à conexão com a mãe Terra através dos estados de êxtase que podem produzir com sua arte. Esses artistas também substituirão, em um futuro mais distante, a função das instituições religiosas. Quando o império do patriarcalismo judaico-cristão e sua ética de rebanho sofrerem o duro golpe, serão os artistas mágicos que promoverão a efetivação da transvalorização de todos os valores, como propunha Nietzsche. O entendimento cabal do sentido poético de Planchêz será feito mais tarde. Certo é que, o poeta ainda tem muita pajelança para fazer em prol da cura do mundo. São artistas como  ele que nos salvam e sempre nos salvarão.

Blake Rimbaud é a banda elétrica do poeta xamânico Edu Planchêz.

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