top of page

O TERCEIRO MUNDO DO ESPÍRITO – A educação para o futuro e a negação da inércia da sala de jantar          por  André Pereira

 

 

O século XX foi fantástico. Duas grandes guerras e avanços científicos e tecnológicos estrondosos. Doutrinas políticas e ideológicas foram levadas até as últimas consequências. A conquista do espaço. A revolução verde e farmacológica. O projeto genoma. A invenção da juventude e o desenvolvimento da cultura de massa. Pacifismo, feminismo e ambientalismo. Tudo isso moldou nosso atual jeito de ser e pensar. Os anos 60 daquele século foram definitivos, em termos culturais, sem dúvidas. Popularização das pílulas anti-concepcionais, informática, transmissão de dados via satélite e a cultura Pop. Tudo isso formatando profundamente aquilo que somos hoje. Como vivemos e como vemos o mundo. Havia muita empolgação e otimismo, embora tanta desgraça e massacres ocorressem durante esse período. Mesmo assim, existia esperança e as aspirações humanísticas estavam mais vivas que nunca. As questões filosóficas ressurgiam com uma força profunda em meio o cotidiano pragmático. Pensar sobre a vida e suas significações parecia ser algo importante e um exercício a ser feito por todos, e não apenas por iniciados ou especialistas. Continuemos a falar um pouco sobre os aspectos da contracultura naquele século.    

Cientistas, autores, gurus e artistas que procuravam questionar os paradigmas de nossa ocidental existência social tornaram-se grande referências. Adouls Huxley, Sartre, George Orwell, Timothy Leary, Albert Hoffman, John Lennon, Bob Dylan, Carlos Castañeda, são alguns entre muitos outros que se encontram nessa lista. É interessante citar o caso de Huxley que utilizava seus romances para refletir sobre o funcionamento de nossa sociedade ocidental e dispunha da imaginação como instrumento de projeção do futuro. No final dos anos 50 e durante os anos 60, Huxley havia se tornado uma celebridade midiática e seu livro Admirável Mundo Novo, escrito na década de 30, ganhava maior fôlego naquele ambiente de discussões promovidas pela contracultura hippie. Entender as questões mais profundas do espírito humano e planejar o futuro mediante essas indagações e pesquisas filosóficas estava na ordem do dia. Era também o momento certo para repensar as dicotomias entre os regimes políticos e econômicos do capitalismo e socialismo. Repensar as ideias de controle e liberdade. Enfim, refletir sobre os caminhos que civilização ocidentalizada havia tomado.  

Soma nosso de cada dia

 

Em Admirável Novo Mundo, a distópica sociedade civilizada do futuro é virtualmente perfeita e construída quase que completamente isolada do mundo natural. Considerada pelo próprio autor como uma “ditadura benevolente” ela é controlada por uma casta gestada e instruída para tal finalidade. Rituais orgíacos garantem a promiscuidade sexual enquanto prática psicossocial saudável. Não há mais parto entre as mulheres e a concepção e nascimento das crianças ocorre em fábricas bioquímicas. Os conceitos de família, pai e mãe tornam-se obscenidades. O amor é substituído pela segurança e o conforto do individualismo. A droga psicoativa denominada soma é utilizada como fonte de prazer e instrumento de controle. A educação é feita através do condicionamento de cada casta para uma determinada responsabilidade específica na sociedade. A morte é considerada algo natural e não é um tabu. Ninguém questiona sua posição social ou ordem das coisas. Há uma zona, fora da área civilizada, onde um parque, totalmente cercado e controlado, abriga seres humanos considerados primitivos justamente por viverem ainda como conhecemos na atualidade, morrendo de velhice e gestando naturalmente suas crianças. Um dos personagens mais estimulantes do romance é o denominado John, O selvagem, que, retirado da reserva, é levado até a parte civilizada e por lá permanece, sofrendo todo o impacto que aquela experiência pode produzir. Então, finalmente ele se mata. E por quê?  

Se olharmos a nossa volta, muito do que Huxley previu através da imaginação se concretizou de uma forma ou de outra. Uma das questões mais importantes está no problema do controle social. De como o Estado nacional aprimoraria os instrumentos de coerção sobre os indivíduos no futuro. Ao contrário de George Orwell, que em seu “1984”, descrevia uma sociedade onde o controle era exercido de forma ultra-invasiva e autoritária, Huxley descreveu uma estrutura de controle não imperativa e mais sutil. Porém, não menos eficiente. Uma civilização onde o prazer sensual do indivíduo seria a garantia máxima, como regra de manutenção da harmonia social, do bem estar coletivo. A dor e a violência física, enquanto instrumentos de ordem, seriam substituídos pelo prazer químico e pela oferta de conforto imediato a cada indivíduo, mantendo todos em estado de tranquilidade e serenidade constante, impedindo qualquer tipo de subversão ao statuos quo. É difícil que em uma circunstância desse tipo alguém possa enxergar o que realmente está acontecendo. Em um outro grau de intensidade podemos dizer que de alguma maneira presenciamos a existência de determinados mecanismos muito similares aos apresentados por Adouls Huxley. Principalmente no tocante a oferta excessiva de atividades e produtos que promovem prazer em nossa atual sociedade. Como o próprio autor confessou em um texto de 1956, Admirável Mundo Novo Revisitado: “A coisa mais triste que pode acontecer a um profeta é provarem que ele está errado; a segunda coisa mais triste é provarem que ele está certo. Nos vinte cinco anos que se passaram desde que Admirável Mundo Novo foi escrito, passei por ambas as experiências. Os acontecimentos provaram que eu estava tristemente errado e tristemente certo”.

 

Diversões eletrônicas, o mundo da moda, o luxo da riqueza, a indústria cultural, as instituições religiosas, etc. São todos instrumentos que foram aprimorados para manter os indivíduos o mais confortáveis possível. São como passa-tempos projetados para manterem as pessoas ocupadas com tais universos mágicos e livres dos incômodos de nossa angústia diante do abismo que é a própria finitude da existência. Por consequência, são sistemas de controle sutis, que nos mantém dentro de determinados padrões de pensamento considerados “aceitáveis” ou “civilizados”. Não é difícil pensar assim quando observamos que todos aqueles que controlam os principais meios de comunicação (elemento fundamental na formação e divulgação da chamada opinião pública) estão ligados à elite política e econômica. Durante o século XX essas questões se tornaram caras aos que queriam compreender e transformar o mundo. E é por isso que destaco a contracultura do final dos anos sessenta que se ocupou intensamente desses aspectos ligados ao controle social sutil através da manipulação das mentes e das almas. Sob essa ótica podemos dizer que a cultura oficial ou estatal é a maior ferramenta de controle ideológico jamais projetada. E o que é a cultura oficial? Basicamente o sistema educacional, econômico, estético-filosófico e de crenças dominante. Muitas vezes sustentados diretamente por políticas públicas ou indiretamente através de incentivos fiscais.  

Educação para a liberdade

 

“We don't need no education/ We dont need no thought control” canta a banda Pink Floyd em Another brick in the wall, lançada em 1979 no disco The Wall. E completam, “All in all it's just another brick in the wall/ All in all you're just another brick in the wall”. São versos que retratam a disposição de uma geração em negar a inércia política instaurada. Em negar contundentemente seu sistema educacional, que dita uma cosmovisão de mundo que não se enquadra em seu espírito contestador e inquieto. A alienação é combatida aqui na raiz. É na escola que o sujeito é instrumentalizado para atuar na sociedade. Como mais um tijolo na parede, esse sistema produz indivíduos vazios de sentido mas úteis enquanto peças sustentadoras dessa ocidental sociedade judaico-cristã. E a saída dessa “sinuca de bico” não é o niilismo, pelo contrário, é a própria afirmação da vida, em sua mais profunda acepção. Essa libertação dos instrumentos de controle é necessariamente o encontro com a própria realidade e não a construção de uma adequada ilusão. No disco Tommy, do The Who, na canção I'm free, encontram-se os seguintes versos: “And freedom tastes of reality/ I'm free-I'm free”. Ou seja, é na busca da compreensão da própria realidade que reside a liberdade e esse caminho não se encontra fora do indivíduo, como por exemplo, nas grandes instituições seculares ou espirituais. “Messiahs pointed to the door/ And no one had the guts to leave the temple!” conclui a canção. A resposta está em um profundo mergulho no interior de si mesmo para na volta ao imediato ser capaz de interagir de forma transformadora e harmônica com o ambiente. 

O já citado personagem de Admirável Mundo Novo, John, O selvagem, conhece a “civilização” depois de adulto. Embora tivesse muitas informações sobre este mundo maravilhoso durante toda vida, pois sua mãe tinha sido educada dentro dos limites da sociedade civilizada e depois ironicamente abandonada na reserva, ele nunca o vira, de fato. Nunca estivera lá. E em uma determinada ocasião sua mãe é resgatada e ele é levado junto. Chegando na parte civilizada do planeta, ele se depara com aquela fascinante e estranha realidade que logo se transformará em um pessoal martírio. Por que as pessoas não enxergam sua condição de seres manipuláveis? Como podem não cultivar a dúvida? Por que se esquivam de encarar a realidade tal qual ela se apresenta? Como podem querer as vantagens do Soma através de grandes perdas nos mais altos níveis humanos? Todas essas questões atormentam o personagem. E em um diálogo solitário, incompreensível para os demais, ele se afasta e se recolhe até sucumbir ao desejo da própria morte. Nesse caso, a incapacidade de resolver a incongruência entre controle e liberdade é evidente. Como em uma guerra, muitos soldados sucumbem na frente de batalha., não seria diferente nos demais conflitos. Não há exército em campanha sem baixas. Voltemos ao lisérgico estado de espírito contracultural do final dos anos 60 e vejamos como ampliamos esse quadro de pensamento.  

“Business men they drink my wine/ Plow men dig my Earth. None of them along the line/ Know what any of it is worth” Destaca Bob Dylan em All Along Watchtower. Nem todos são solidários aos questionamentos do tipo exposto aqui. Poucos estão dispostos a realmente procurarem as relações mais profundas e ocultas entre as coisas. Os indivíduos não possuem tempo ou interesse em levarem seus pensamentos para além dos limites das suas necessidades mais prementes. Vale lembrar que a cartilha maior da contracultura do final do século XX pregava o despojamento do “eu” egocêntrico como forma de se alcançar estados de consciência que permitissem uma visão mais ampla do mundo. Nesse sentido podemos pensar a mente de um indivíduo mediano funcionando dentro de uma estrutura tradicional de pensamento, pautada na racionalidade e no reinado do “eu” egocêntrico que age como um mecanismo utilitário para restringir e selecionar o enorme mundo de consciências possíveis, canalizando experiências em faixas biologicamente lucrativas, limitando a atenção do indivíduo à resolução de seus problemas mais imediatos. Huxley, um humanista que acreditava na educação como forma de emancipação humana ilumina a questão: “O problema básico da educação é como aproveitar da melhor maneira possível ambos os mundos – o mundo da utilidade biológica e bom senso, e o mundo da experiência ilimitada subjacente a ele. Suspeito que a solução completa para o problema só pode chegar àqueles que aprenderam a se estabelecer no terceiro e definitivo mundo do 'espírito', o mundo que subentende e interpreta ambos os outros mundos”. É muito interessante perceber a importância que os níveis do inconsciente ganham no projeto de construção de uma humanidade do futuro. Talvez essa seja a principal lição pedagógica da contracultura moderna. 

Essa pedagogia não é uma simples volta ao passado, ao mundo da primazia das pulsões inconscientes e nem a negação da lógica. Mas, sim, um exercício de reavaliação dos estados de consciência que foram priorizados ao longo da história e dos que foram suplantados no seu percurso civilizatório. É o passo seguinte da consciência humana. O objetivo é a apreensão ampla da realidade. A superação dos limites do cógito cartesiano e do imperativo da razão. Assim como a filosofia do martelo de Nietzsche voltava-se para os espíritos livres, essa educação é resultado desse processo de busca pela liberdade orgânica e mental. Mas, ainda há muita resistência em se pensar assim, de uma maneira mais autônoma e independente. Como servos voluntários, a maioria das pessoas se entrega a conformação. Continuam presas a inércia do cotidiano, mesmo insatisfeitas, por não possuírem forças e muito menos condições para saír dessa situação. Em Admirável Gado Novo, Zé Ramalho constata essa realidade: “Lá fora faz um tempo confortável/ A vigilância cuida do normal/ Os automóveis ouvem a notícia/ Os homens a publicam no jornal” e assim vamos seguindo, vivendo em uma democracia supostamente livre, acreditando que é possível exercer o livre-arbítrio. Enquanto levantamos todas essas questões, como na canção Panis Et Cirsenses, de Caetano Veloso, interpretada adequadamente pelos Mutantes, “as pessoas da sala de jantar estão ocupadas em nascer e morrer”.  

Adouls Huxley foi uma das mentes mais criativas do século XX

O texto de Huxley ganhava maior fôlego naquele ambiente de  contracultura hippie.

Na ópera rock TOMMY, da banda The Who, registrada em filme e disco; o personagem Tommy, após um processo de libertação convoca a juventude para fazer o mesmo. É necessário proceder uma viagem interior para encontra-se com a realidade. A saída não etá nos templos ou em receitas milagrosas.

Bob Dylan sempre esteve atento aos sentimentos mais profundos de nossa contemporâneidade e soube muito bem observar e destacar detalhes da condição humana de maneira muito particular provocativa .

O álbum Tommy (1969) e  The Wall (1979) são exemplos de discos conceituais e que lidavam com questões muito pertinentes de nosso mundo contemporâneo. São grandes legados artísticos do século XX, grandes obras de arte. 

bottom of page