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A VISÃO PSICODÉLICA DO MUNDO – aspectos da contracultura no século XX

 

"Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo pareceria ao homem como realmente é, infinito."

William Blake.

 

Por André Pereira

A poesia metafísica de Blake aponta para a possibiliadade da liberdade total do pensamento.

Esse aforismo é muito famoso devido a uma de suas partes ser utilizada como título do mega grupo de rock “THE DOORS”. Antes disso, a epígrafe também se encontra no prefácio do famoso “A EXPERIÊNCIA PSICODÉLICA – O LIVRO DOS MORTOS” de Timothy Leary, lançado em 1964. Momento em que a contracultura procura elencar suas bandeiras e definir seus paradigmas. Autores como William Blake são resgatados, assim como as tradições orientalistas e as antigas práticas de evocação dos estados não-comuns de consciência. A era da psicodelia estava inaugurada! O mundo seria palco de grandes transformações comportamentais sem precedentes que alterariam para sempre nossa forma cotidiana de ver as coisas. A máxima havia sido cunhada por Leary: “Turn on, tune in, drop out”. Uma nova geração despontava ávida por transformações em sua própria consciência a respeito do mundo e do universo. Os tradicionais paradigmas morais e filosóficos da sociedade ocidental estavam sendo questionados. Todos os valores poderiam ser relativizados naquele momento, e a liberdade estava exatamente no poder de escolha dos indivíduos sobre aquilo que lhes era válido. 

A Guerra Fria, a luta pelos direitos civis nos EUA, as ditaduras capitalistas na América e a ressaca do consumismo despontavam como um dos principais eventos da segunda metade do século XX. O grande avanço econômico e tecnológico da civilização ocidental contrastava com a miséria e a fome que ainda grassavam o planeta. A juventude do chamado primeiro mundo intuía que sua riqueza era fruto de um sistema não democrático, pelo contrário – o sucesso dos países desenvolvidos era sustentado pela exploração de suas colônias econômicas e as guerras eram um mecanismo necessário para a manutenção do poder. Os mais jovens mortos em batalha seriam uma espécie de sacrifício humano em prol da manutenção da hegemonia dos vitoriosos. A juventude dos anos 60 precisava reagir diante dessa realidade macabra. O The American way of life tornara-se um pesadelo pelo seu preço físico e moral. Era necessário acordar.

A experiência psicodélica, segundo Leary, é uma espécie de “jornada a novos reinos da consciência” onde é possível exercitar o estado do não-estar, do não ser. Como se o ego do indivíduo se dissolvesse e portanto ele tivesse acesso a informações despersonalizadas, ou seja, contataria um repositório de dados ancestrais não racionais; o que Carl Jung chamou de inconsciente coletivo. Uma viagem que, feita de forma planejada e orientada, poderia trazer clareza de espírito em um mundo nebuloso e sombrio. Era preciso reprocessar o modo do indivíduo exercer seu próprio pensamento, o que traria transformações mais amplas na cultura ocidental. Uma mudança feita em cada átomo da sociedade – o indivíduo. A revolução ética pregava a mudança interior como prerrogativa da transformação social. O ser humano deveria sentir, intuir e se entregar ao amor em oposição ao pragmatismo da racionalidade produtiva belicista que propagava o cálculo e o sucesso. O mundo padecia da exacerbação do ego e do individualismo; como conseqüência, o sistema capitalista havia chegado ao ponto crítico da tensão entre produção e consumo. Impactos ambientais, aumento da pobreza, exclusão social e as guerras foram alguns dos resultados nefastos produzidos por essa lógica.

Os movimentos de contracultura sempre existiram na história. Eles foram caracterizados por grupos que se opunham a uma cultura dominante estranha e impositiva. Quando não havia identificação entre os códigos impostos e a visão de mundo daqueles subjugados a esses sistemas culturais opressores, ocorria o surgimento de uma subcultura de resistência. É possível dizer que o cristianismo primitivo surgido no seio do Império Romano é, em certo aspecto, um movimento de contracultura. O que importa saber é que o fenômeno não é novo, e que a psicodelia dos anos 60 foi um movimento contracultural na medida em que se opunha aos valores estabelecidos do consumismo e belicismo racionalista/pragmático da sociedade ocidental. A razão para essa postura era óbvia: as incongruências entre riqueza e pobreza geradas pelo mundo capitalista pós-atômico e as suas promessas de sucesso e conquistas extraordinárias no plano material a um preço muito alto. A geração Hippie encarnou um novo movimento de manifestação contracultural que possuía todo um conjunto de códigos (ou anti-códigos) construídos intuitivamente, muitas vezes absorvidos de outras experiências históricas, reeditando-os. É isso que explica a empolgação daquela geração com as técnicas egípcias de controle da mente, a organização social dos indígenas americanos e os ensinamentos antigos das culturas do chamado extremo oriente.

Timothy Leary estava ocupado em pesquisar os limites do pensamento. Em busca do estabelecimento do humanismo ético.

Acompanhando a linha de raciocínio de figuras como Timothy Leary ou Terence McKenna, haveriam alguns métodos eficazes de suspender interiormente toda essa educação ocidental tecnobelicista para uma reorganização da psique sobre novas bases. As técnicas incluíam, entre tantas outras, a meditação ou privação de sentidos. Os procedimentos com a utilização de substâncias psicodélicas seriam um tipo de atalho, e o caminho mais rápido e fácil estava no laboratório: o LSD 25. Mas tanto Leary, como MacKenna não acreditavam que as drogas, por si só, eram capazes de levar os indivíduos aos estados psicodélicos. Seria necessário um treinamento mental e certa atenção para determinadas referências imprescindíveis à efetivação do processo. Não foi à toa que Leary se debruçou, com a ajuda de outros amigos especialistas, no “LIVRO TIBETANO DOS MORTOS” - o livro do Bardo Thodol - e o adaptou, sob uma ótica lírica-psicológica, para a sua geração, criando uma espécie de manual para as sessões de viagens psicodélicas com alucinógenos e enteógenos. 

Glastonbury Festival of Contemporary Performing Arts, em 1970. Auge da propaganda hippie de sua revolução ética.

Os movimentos da juventude de 1960 resignificaram a visão psicodélica do mundo, pois ela já existia, representada por outros nomes, sob outras formas, presente desde a aurora da humanidade. Mas, o interessante é que essa geração fez uma intensa viagem aos confins da consciência, resgatando antigos valores esquecidos pelo império da racionalidade, apontando novas possibilidades de se posicionar perante a realidade. A onda psicodélica do século XX deixou um legado de importantes transformações no cotidiano pois trouxe para a pauta pública questões de interesse coletivo que sensibilizam toda a sociedade atual. Feminismo, sustentabilidade, tolerância religiosa, preservação das espécies, visão holística do mundo, terapias complementares à medicina, pacifismo, pedagogias alternativas, software livre, entre outros tantos temas comuns na contemporaneidade foram introduzidos a partir da visão psicodélica estabelecida naquele período. 

Vários elementos do movimento psicodélico foram absorvidos pelo mesmo sistema patriarcal capitalista que era alvo das críticas mais ferrenhas na fase heróica dos acontecimentos. A indústria da moda e os meios de comunicação perceberam que todos aqueles códigos estéticos, explicitados pelos cabelos, adereços exóticos, cores fortes, música jovem, artes lisérgicas, etc; poderiam ser comercializados em larga escala. Rapidamente os esteriótipos foram definidos e transformados em produtos de consumo. Em pouco tempo a ideia-síntese de paz e amor foi esvaziada devido a sua vulgarização e deturpação. As drogas se tornaram um relevante caso de saúde pública, as preocupações ambientais se transformaram em negócios lucrativos e muitos gurus esotéricos, exaltados como popstars, contrariaram seus próprios ensinamentos. Enfim, a loucura e o desânimo calaram muitos entusiastas.   

Entretanto, em meio ao turbilhão, as lideranças da contracultura moderna se recompuseram e adequaram sua visão psicodélica de mundo aos processos da globalização. Os avanços no campo da informática e a chegada da era digital definiram novas abordagens e deram sustentação à princípios já desenvolvidos. Nos anos 80, Timothy Leary se concentrou nas possibilidades da tecnologia da informática para a reprogramação interna do indivíduo. Em seu vídeo “COMO OPERAR SEU CÉREBRO”, ele propõe uma técnica de controle da mente usando repetições de mensagens básicas, luzes, cores e sons. Leary então apontou que os computadores - e mais tarde a rede integrada de computadores e a possibilidade da criação de um sistema de troca de informações ilimitadas pelas futuras infovias - substituiriam o LSD enquanto mecanismo eficiente para a expansão da consciência. 

Richard Stallman, fundador do projeto GNU e defensor do softwear livre. A expansão da consciência está no acesso à informação.

Em outra frente, Richard Stallman publicava em 1985 o manifesto GNU - as bases filosóficas do software livre – que definia os objetivos do projeto GNU. A ideia de Stallman era utilizar os princípio da troca livre de conhecimento entre os indivíduos através de seus computadores. Qualquer pessoa poderia acessar todo conhecimento disponível na internet ao mesmo tempo colaborando para a ampliação desse processo. A lógica do projeto nunca compactuou com as orientações da cultura do monopólio capitalista. Era uma proposta coletivista, de trocas não pautadas pelo lucro e de interesse que extrapolava os meros individualismos. Um posicionamento legitimamente contracultural. Hoje, o sistema conhecido como Linux avança em termos de acessibilidade e materializa os anseios dessa visão psicodélica do mundo.

Willian Blake sugere que se as portas da percepção estivessem limpas, ou abertas, os seres humanos atingiriam a consciência do infinito. Provavelmente algo um tanto perigoso, do qual Blake experimentou e pagou um preço muito alto, como conta sua biografia. Mas ousar ser criativo é uma característica humana das mais fantásticas. A civilização ocidental e seu utilitarismo furtaram do sujeito comum a capacidade de exercer plenamente sua criatividade. Em última instância, estão vetados os voos mais elevados. Os grandes questionamentos metafísicos e filosóficos se tornaram obsoletos no reino do utilitarismo. É por isso que a visão psicodélica se torna uma via de resistência, no sentido de que aponta para a infinitude das possibilidades. Não há limites para a criatividade humana, e isso ocorre em todos os campos, do científico ao político. As visões de direita e esquerda do pensamento ou os dogmas religiosos não dão conta da possibilidade do infinito e do mergulho profundo na imaginação. Essa é uma tensão real que torna o exercício psicodélico uma ação de resistência contracultural dos tempos atuais.       

The Doors sintetizava, através de seu rock e poesia, os princípios da busca pela liberdade ética.

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