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ESTRUTURA DO EDIFÍCIO – A construção da identidade musical do país via Pixinguinha.  

 

 

O Brasil possui um elenco de compositores e músicos que transformaram nosso jeito de ver e ouvir a música. Entre essas figuras, encontra-se um dos mais emblemáticos ícones de nosso país – Pixinguinha. Um músico, compositor, arranjador e influente artista de nossa cultura nacional. Sua música é praticamente uma invenção. Como se ela fosse um grande divisor de águas. Um ponto de mutação. Pixinguinha pode ser um nome famoso, alguns de seus temas também são facilmente reconhecidos e exaustivamente cantarolados. Mas, sua discografia continua maldita e o mito em torno de sua figura parece distanciar o público de sua música. Obras como Lamentos e a eterna Carinhoso estão arraigadas em nosso inconsciente coletivo. Mas a arte de Pixinguinha vai além de sua caricatura – que muitas vezes lembra a sorridente e bonachona figura de seu amigo, Louis Armstrong. Seu reconhecimento internacional é resultado da força simbólica de seu trabalho. Seus feitos no campo musical são uma herança atemporal da humanidade.  

Não à toa que o mestre é considerado um grande gênio. Sua estréia como músico de estúdio ocorreu aos 13 anos, no início da década de 1910, junto com o aparecimento, no Brasil, dos equipamentos de gravação e a prensagem de discos. Pesquisadores delimitam esse momento como revolucionário para o choro. Já em 1914, no frescor dos 17 anos, editou e publicou sua primeira composição, chamada Dominante. Ou seja, com muito pouca idade, Pixinguinha já havia desenvolvido uma sólida técnica que garantiria uma plena liberdade para a confecção das composições e arranjos que viria fazer mais tarde. A vida inquieta, o gosto pela boemia  e  o carnaval proporciona -

 

ram à Pixinguinha grandes encontros. Donga e João Pernambuco constam como importantes nomes que estiveram ao lado do músico, tanto tocando nos carnavais, como nas rodas de choro na famigerada casa de Tia Ciata. Inclusive, local onde ocorreu o parto de Pelo Telefone, canção de Donga e Mauro de Almeida, considerada o primeiro samba gravado na história.

 

No final da década, em 1918, Pixinguinha e Donga receberam um convite para formarem uma pequena orquestra e tocarem no salão de espera do grã-fino cinema Palais, no Rio de Janeiro, e assim nasceu o mítico conjunto 8 Batutas. O sucesso estava estabelecido, e Pixinguinha se tornara um nome público e notório. Mesmo assim, o racismo impregnado na sociedade brasileira por vezes mostrou sua face para o compositor, como nos boicotes operados por rádios que se recusavam tocar sua obra ou pelo silêncio da imprensa em não publicar as importantes atividades e projetos encapados por ele. No entanto, o episódio mais emblemático a esse respeito é contado por Altamiro Carrilho, no programa televisivo Ensaio, de Roberto Faro. Carrilho relembra que, Pixinguinha, ao chegar para tocar em um luxuoso hotel do Rio de Janeiro com os demais batutas, foi interpelado por um segurança que explicou que não era permitido o trânsito de negros no salão principal, e que teriam que se deslocar até a entrada de serviço, por onde passariam pela lavandeira e a cozinha até acessarem o palco. Sem grandes questionamentos, o mestre se retirou para uma entrada aos fundos do hotel, acompanhado pelos demais músicos que estavam bastante incomodados. Questionado por um dos batutas sobre o que significava tudo aquilo, Pixinguinha apenas respondeu: “Lamento, amigos. É lamentável”. Então, alguém acrescentou: “Essa história merecia uma música”. Mas, Pixinguinha encerrou o assunto. Carrilho nos levar a compreender a já citada música Lamentos como um tipo de registro contundente sobre a existência do racismo no Brasil.

Depois de rodarem o país, os 8 Batutas foram convidados para uma temporada em Paris, e a partir desse episódio, o mestre definitivamente se consagrou com uma referência artística e um líder de conjunto extremamente eficiente. Muitos discos foram gravados e apresentações feitas durante as décadas de 20, 30 e 40. Pixinguinha se firmou como um profissional de estúdio e seus arranjos, que fugiam do lugar comum da época, chamavam muito a atenção no meio musical. Enquanto flautista, ele atuou até 1942, quando gravou pela última vez tocando o instrumento que iria substituir pelo saxofone. Pixinguinha lançou até o início dos anos de 1960, em bolachões de 78 r.p.m, mais de 300 discos como participante, intérprete ou diretor e outros 182 discos como autor. É impressionante o volume da obra desse artista. Infelizmente, pouca coisa do material original gravado foi relançado, apenas uma diminuta fração contendo um resumo estereotipado da arte de Pixinguinha.  

Pensar Pixinguinha dentro de uma perspectiva musicológica, é colocá-lo como um dos pontos fundamentais estabelecidos na árvore genealógica da moderna música brasileira que se estruturou durante o século XX. Como todos os grande artistas que pensavam a estética que desenvolviam em termos de brasilidade, o mestre não estava preso à um estilo ou escola. Suas músicas iam da polca ao choro, e muitas vezes foi acusado de ser jazzístico; termo pejorativo, pois insinuava a “contaminação” do estrangeirismo na música brasileira. A mesma acusação que João Gilberto e sua bossa-nova receberam. E, de modo similar, mais tarde, os tropicalistas, quando aderiram às guitarras elétricas. Mas, interessante notar que, Pixinguinha, João Gilberto e os Tropicalistas pensavam o Brasil em termos plurais e jamais recusaram se aprofundar no substrato da cultura popular assim como seu cosmopolitismo não os deixava esquivar das influência externas. O Brasil era visto como um grande caldeirão étnico e cultural. Uma “persona” ainda em construção. Era necessário experimentar, sem fechar os olhos para o cenário real ao redor. Sem esquecer o tal cotidiano brasileiro.

 

O diferencial dos artistas citados acima estava na ciência que tinham sobre o próprio processo de criação, e a clara consciência histórica que demonstravam possuir ao produzir sua arte num país colonizado culturalmente como o Brasil. Pixinguinha é um artista que delineou o padrão musical de seu tempo. Não é exagero dizer, como Sérgio Cabral já apontou antes, que “Pixinguinha foi o grande criador do arranjo musical brasileiro”. Está na historiografia que por décadas o mestre atuou intensamente como arranjador e também, mais tarde, como professor. E que sua personalidade artística influente inspirou e orientou as novas gerações. É tocante também perceber como a obra de um artista como Pixinguinha fala diretamente com a alma das pessoas. Não é preciso ser um “entendedor” de música para degustar sua arte. É justamente isso que torna sua música ainda maior. Uma melodia como a de Carinhoso ecoa atemporalmente, além das fronteiras espaciais, em incontáveis cabeças. Ela se manifesta em inumeráveis assovios. Continua a ser homenageada e gravada nos quatro cantos do mundo. Pixinguinha é um grande patrimônio a ser descoberto. Um território ainda a ser explorado. E como toda arte carregada de significados, cada nova geração fará o seu proveito sobre a herança recebida. A tecnologia atual pode facilitar o maior acesso ao material original e isso muda muita coisa. Amplia a perspectiva.    

 

por André Pereira

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