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O ZÉ E O TATU – a promiscultura dessa poliscultura. Uma arte sem pecado.

 

 

Por André Pereira.

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador” é uma frase-expressão que diz muito, em termos culturais, sobre o chamado mundo periférico em desenvolvimento. A ideia de que a miscigenação, a história recente de formação das nações colonizadas e o caldo multicultural que as compõe são o próprio substrato da sua originalidade, enquanto a identidade espiritual desses Estados-nações, é praticamente consenso entre grandes intelectuais. Para Darcy Ribeiro, por exemplo, de maneira muito soberba e sincera, o Brasil se caracteriza como uma nova Roma, no sentido de um novo aparelho estatal e nacional, resultado da obrigatória convivência plural de povos aqui estabelecidos pós-Cabral, capaz de criar condições – por sua própria existência enquanto locus sincrético e pluralmente jurídico – para a gênese de um novo amálgama cultural polissêmico e multiétnico; como uma inovação da visão de mundo humana até então estabelecida.     

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador” é uma frase-expressão que diz muito, em termos culturais, sobre o chamado mundo periférico em desenvolvimento. A ideia de que a miscigenação, a história recente de formação das nações colonizadas e o caldo multicultural que as compõe são o próprio substrato da sua originalidade, enquanto a identidade espiritual desses Estados-nações, é praticamente consenso entre grandes intelectuais. Para Darcy Ribeiro, por exemplo, de maneira muito soberba e sincera, o Brasil se caracteriza como uma nova Roma, no sentido de um novo aparelho estatal e nacional, resultado da obrigatória convivência plural de povos aqui estabelecidos pós-Cabral, capaz de criar condições – por sua própria existência enquanto locus sincrético e pluralmente jurídico – para a gênese de um novo amálgama cultural polissêmico e multiétnico; como uma inovação da visão de mundo humana até então estabelecida.     

A arte de Zé e o Tatu representa a diversidade das possibilidades apresentadas pela cultura brasileira .

O ideário do Brasil recente foi construído sobre as bases do conceito abstrato e nebuloso de “país do futuro”. Dessa tensão - resultante da necessidade pela busca incessante do novo, em prol da redenção do povo tupiniquim em face a sua histórica dependência cultural - eclodem as mais variadas expressões dos Brasis possíveis. No âmbito da cultura musical isso se torna mais evidente quando observada a chamada linha evolutiva da música popular brasileira e toda discussão que surge em torno desse contemporâneo movimento progressivo da canção feita no Brasil. O que quero ressaltar é que há um processo, consciente e inconsciente, de produção artística nacional com tendências experimentais muito marcantes, e que se    manifesta   de    forma 

mais clara e evidente na canção popular. As possibilidades rítmicas, melódicas e harmônicas exploradas pela música moderna brasileira parecem virtualmente infinitas devido a esse estado de espírito permanente de busca, assimilação e reinvenção (ressignificação) da cultura brasileira e de suas heranças históricas.

Em meio a este cenário de amplas paisagens sonoras há uma obra que é necessário observar - O ZÉ E O TATU. Uma dupla que produz arte desde o início dos anos 90 com um olhar que aponta para várias direções e se manifesta em múltiplos suportes. Não seria diferente, seus autores são tão ecléticos quanto a arte que produzem. José Menna é escritor, compositor, instrumentista, videomaker, neurocientista e pesquisador. Tato Ribeiro é dramaturgo, diretor, ator, poeta, músico e filósofo. Os dois se tornaram amigos e parceiros musicais a partir dos encontros ocorridos nos churrascos de funcionários do Banco do Brasil, empresa na qual seus pais atuavam. Os momentos de lazer evoluíram para o trabalho em dupla e o conceito de O ZÉ E O TATU amadureceu durante essas duas décadas e meia de convívio fraterno e artístico. O material produzido pela dupla inclui mais de trezentas canções, parte delas publicadas em três Cds, um DVD e um espetáculo chamado “A BOLA E A RODA”.

Para quem conhece o circuito cultural de Pelotas – RS, o nome da dupla é muito familiar. Porém, o alcance do som de O ZÉ E O TATU se restringe aos meios artísticos e midiáticos da região sul e países fronteiriços, como o Uruguai. Mesmo com uma boa divulgação pela internet, a obra é pouco acessada. Isso é triste, visto a alta qualidade que possui e seu caráter de pura brasilidade, que permite ao ouvinte enxergar na canção aquilo que vem das áreas meridionais do país firmado em parâmetros que vão além do regionalismo. A arte da dupla possui características que extrapolam inclusive sua identidade com a MPB, pois ela dialoga com a música erudita e o rock com uma naturalidade pouco vista nos trabalhos de artistas nacionais. Além dos flertes com o jazz, os cantos religiosos e o happening. Sem dúvida, as canções de O ZÉ E O TATU corroboram a ideia de que temos no Brasil um terreno fértil para o desenvolvimento de uma arte vanguardista, no sentido da libertinagem saudável entre a linguagem poética e musical. Na busca pela utilização 

Décadas de parceria consolidaram uma relação profícua e autêntica.

de tudo que é velho de forma nova. É por isso que a música da dupla parece olhar com severidade, tanto para o passado, quanto para o futuro, de maneira a possibilitar uma brincadeira livre com todos esses códigos no presente.    

Embora só admitam oficialmente em seu terceiro álbum, intitulado de “ZU” (2013), que a proposta da dupla, além de musical, é cênica, plástica e biológica – é possível notar todos esses três outros aspectos, mais ou menos intensificados, ao longo da trajetória musical da dupla. A arte nasce musical e se expande, buscando a materialização dos sentimentos nas mais variadas formatações e contextos possíveis. Ou seja, a canção faz seu grande giro panacéico e se completa no palco, no vídeo e na internet. A canção nasce no espírito mas se traduz com o corpo, com a respiração, com a palavra exalada pelo aparelho fônico entrelaçada aos instrumentos musicais. Isso tudo captado por equipamentos eletrônicos que possibilitam o seu ressoar no agora e no espaço virtual. A obra de arte em fragmentos e em sua totalidade. Em movimento constante de ir e vir. É uma arte perspectivista que se aproveita de todos os planos, de todas as luzes, de todas as nuanças, de todos os estados de espírito e pontos de observação para existir e se manifestar.  

O trabalho de produção e divulgação de O ZÉ E O TATU é totalmente independente, feito pelos próprios artistas. Isso dá a dimensão do tipo de projeto que eles desenvolvem – uma obra emancipada de qualquer interesse que a transforme em mero objeto de consumo. Essa característica artesanal do processo é fundamental para que esses autores mantenham-se senhores de sua criação e não se tornem reféns das demandas que sua própria arte possa vir a ensejar. Por não estarem presos ao grande circuito comercial, onde é necessário esgotar rapidamente um padrão estabelecido, estimulando ao máximo o lucro que isso possa gerar, a dupla cria e desenvolve sua arte dentro de seu próprio tempo, buscando depurar suas referências e oferecer isso da melhor maneira ao público. Enfim, é possível pensar a estética de O ZÉ E O TATU como educadora. Não pedagógica, no sentido do compromisso de se ensinar algo de forma sistemática. Mas, enquanto instigadora e inspiradora, a obra da dupla estimula a uma auto-educação, justamente porque sugere ao seu ouvinte espectador uma auto-análise. Observar a arte de O ZÉ E O TATU enquanto um processo em movimento e multifacetado, ligado  às  questões  filosóficas  e  existenciais  da  vida   humana,   estimula   essas reflexões.   É   nesse 

A dupla exerce um trabalho artesanal que mantém a coerência do projeto.

momento que o ciclo se fecha e a canção exerce um papel importante na formação humanística e espiritual do indivíduo. Talvez por isso tenha nascido o belo espetáculo “A BOLA E A RODA”, em que as crianças - e os adultos - são transportados para um mundo fantástico onde o “viajante” e o “inventor” merecem destaque. Dois personagens que fazem clara referência ao processo do conhecimento e invenção do mundo. Do conhecimento de si e do outro. Da dimensão geográfica e imaginativa do mundo. De sua extensão material e imaterial.

Os álbuns “EUPODERIADANÇARESPAÇADO” (2008) e “A GENTE LEVANTA PRA WC'S SENTAREM” (2011) são respectivamente o primeiro e o segundo registro das canções compostas pela dupla. Sonoridades diversas, uso de eletrônicos e percussões, violões marcantes, cantos melodiosos, ou quase falados, poemas de inspiração surrealistas, existencialistas e simbolistas formam uma rica dinâmica. Há uma variedade de estados de espíritos que emergem das músicas a cada audição. Há muita pesquisa e um domínio evidente das linguagens estéticas. Musicalmente, as influências de Villa-Lobos e Bach (entre outros compositores da música erudita) se misturam aos chotes e milongas. O acabamento é muito contemporâneo e possui um ar roqueiro, de irreverência e rebeldia. No entanto, a bagagem que carregam é muito séria. A liberdade que almejam permite criarem despudoradamente seus neologismos ou subverterem o sentido de algumas palavras. As expressões sulinas estão ali, mas não a ponto de definirem a obra. Tudo é muito bem equilibrado e suas assimetrias e dissonâncias são conscientemente planejadas. As músicas transmitem o brilho de suas vidas e isso pode ser apreciado pelo atento espectador.

Em um país tão diverso e fascinante, a obra produzida por O ZÉ E O TATU reafirma a premissa de que a criatividade é uma característica definidora da cultura popular brasileira. A nova Roma, pensada por Darcy Ribeiro, ou esse “país do futuro” almejado por muitos se materializa de fato. Ao menos enquanto um estabelecido Brasil moderno e antropofágico no sentido Oswaldiano. Ou seja, é possível pensar que embora pareça muitas vezes que a massificação e o comercialismo cultural reinam absolutos, um olhar mais atento mostra o contrário. E a internet pode ser essa lupa ou telescópio que amplia a realidade e revela muito daquilo que é ofuscado pela perspectiva cotidiana. Salve a canção de O ZÉ E TATU, feita sem pecado justamente por ser o resultado de todo esse encontro que é o próprio Brasil. Salve a arte feita nesse caldeirão, onde sem pudores a permanente mistura de ingredientes acontece. Salve toda a nossa promiscultura.  

Terceiro álbum da dupla: manifestação musical, plástica, cênica e biológica.

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