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Rory Gallagher - a guitarra espetacular e os ecos amplificados do passado.

 

 

Por André Pereira.

Lembro que ainda no início da minha juventude ouvi falar da banda Taste e sua antológica apresentação no Festival da Ilha de Wight. Mas naquela época, nomes como Jimmy Hendrix, Pete Townshend, Jimmy Page e Eric Clapton ofuscavam qualquer outra coisa. Eu ainda não havia sacado a enormidade daquele talentoso guitarrista irlandês. Então, nos tempos de faculdade, quando nas festinhas estudantis eu ficava ao lado do aparelho de som sacando a discografia disponível, descobri o álbum TATTOO - O quarto álbum solo, gravado em estúdio pelo super herói da guitarra Rory Gallagher. Daquela audição em diante a guitarra de Rory seria imprescindível em minha discoteca. O processo de descobrimento da obra do mestre foi uma grande aventura. Os discos eram maravilhosos e os vídeos com os registros de shows eram impressionantes.

Percebi que Rory Gallagher fazia parte de uma tradição antiga de notáveis artistas que possuíam a capacidade de hipnotizar seu público pela destreza e domínio técnico, um tipo de Mozart ou Paganini da pós-modernidade. Surpreendendo os espectadores com elevada precisão e agilidade, em apresentações descontraídas, baseadas no bom humor e na dramaticidade corporal. Um grande performático, e acima de tudo, um virtuose instrumentista. Carisma e substância artística compunham a obra do guitarrista. Eu fiquei estatelado com tanta informação. E quanto mais eu prestava atenção naquilo tudo mais eu expandia minha experiência musical, pois o som de Rory apontava para a pesquisa. Ouví-lo provocava a vontade de aprender sobre a história da sua música. Eu me perguntava de onde aqueles acordes tinham vindo. Aqueles riffs eram ecos de que lugar? 

A fama das performances do artista é notória e resiste ao tempo. Devido ao impacto que causavam foram registradas exaustivamente. Mesmo para quem assiste aos shows editados em DVD é possível ter uma boa ideia de como as coisas aconteciam no palco. Um excelente exemplo é o material do filme “Rory Gallagher Irish Tour 74”, emocionante do princípio ao fim, com imagens de camarim e depoimentos espontâneos. As tomadas que registram a histeria do público em pleno show explicitam a sublime capacidade de atração que o guitarrista exercia sobre a plateia. Seus espetáculos provocavam um tipo de êxtase quase xamânico. Dizem que Rory gostava de tocar para os outros, cara a cara, enquanto achava o processo de gravação nos estúdios solitário e monótono. Era no palco que o efeito de sua música atingia os níveis  es  -

perados. Rory queria estar sempre cercado por pessoas. Fora dos holofotes, os encontros regados a muita bebida e com constante música, beirando ao esgotamento físico, foram minando sua saúde.  

Técnica, pesquisa e diversão. Rory sabia entreter com muito conteúdo.

É importante destacar que as bases do som de Rory Gallagher estão na música negra dos Estados Unidos. Se em um momento houve o esquecimento pelos próprios norte-americanos de sua raiz no blues, os europeus resgataram nos anos 50 toda a mágica do velho estilo. Foi quando Muddy Waters tocou em Londres, no início daquela década, que a sonoridade do blues finalmente teve reconhecimento internacional. Poucos anos depois, toda uma geração de jovens músicos, ligados ao rock, foram extremamente influenciados por esse resgate cultural. Grandes bandas do cenário europeu escancaravam sua idolatria pelos mestres do blues, como o grupo Roling Stones que teria extraído seu nome de uma canção homônima do próprio Muddy Waters.

 

A música, Rory Gallagher e seus músicos são o próprio espetáculo. Não é preciso muita coisa. Nada de grandes cenários, ornamentações extravagantes ou roupa luxuriosas. Embora as tantas participações de convidados, a inclusão de outros instrumentistas em shows e a variedade de instrumentos que Rory tocava, desde cordas acústicas à gaita ou saxofone; a composição básica do grupo girava em torno da guitarra, baixo e bateria. Suas stratocaster descascada e a camisa de flanela eram como um uniforme. A diversão aliada à excelente música caracterizavam o projeto do artista. As coisas aconteciam como uma grande festa dionisíaca, no melhor sentido da palavra. As pessoas iam ao delírio pelo encantamento de toda a alegria que aquela música podia proporcionar.

Rory e sua tradicional camiseta de flanela e stratocaster

A tríade: pesquisa – técnica – diversão deve apontar alguma luz sobre os significados da obra de Rory Gallagher. Se importa as sensações e os estados emocionais que a música pode provocar em qualquer um, importa também a sua história e como ela é feita. Rory era um grande colecionador de discos e toda sua obra é um olhar para essa tradição de modo a reeditá-la criativamente, de acordo com os padrões de sua época, avançando em termos técnicos, definindo alguns limites históricos. Ele pode não ser considerado um fenômeno de vendas ou se tornado um ídolo de multidões, mas com certeza se consolidou como referência para muitos outros artistas de grande envergadura. Foi o primeiro guitarrista irlandês a obter projeção mundial. E sua fama chegou até Bob Dylan, que uma vez foi até os bastidores do show de Gallagher para cumprimentá-lo, quando o guitarrista irlandês perguntou para alguém: “Quem é esse cara?”.

 

Há muito que se falar desse extraordinário artista, mas o importante é ouví-lo. Em uma pequena coluna como essa é possível apenas apontar alguns caminhos para se chegar até o guitarrista. Nos últimos anos, o acesso ao seu som ficou mais fácil com as reedições digitalizadas do material discográfico e o lançamento de vários DVDs com seus espetaculares shows, e na internet estão disponíveis inúmeras informações sobre sua carreira e música. Lembrando que no Brasil, acessar esse tipo de material sempre foi uma tremenda dificuldade. Podemos dizer que agora estamos mais perto da obra de Rory Gallagher do que nunca - isso é muito empolgante para quem gosta do estilo e pretende se aprofundar em sua arte. Infelizmente, o guitarrista não está mais vivo para fazer suas grandes apresentações. No dia 14 de junho de 1995 ele faleceu de infecção hospitalar após um transplante de fígado, deixando um magnífico legado na história da guitarra e do blues pesado. Um brinde ao mestre!

Coletânea de shows que abrange vários momentos espetaculares da carreira do guitarrista.

Fantástica apresentação no programa da TV alemã BeatClub.

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